Estupro sempre foi um tema espinhoso em Hollywood e, na maioria das vezes, os temas espinhosos eram varridos para debaixo do tapete. Quando abordado, principalmente na época em que o código de censura estava ativo, o estupro geralmente era usado como um artifício de história: o ato ocorria, e logo em seguida a cena mudava e nada mais era mencionado. Muitas vezes, as personagens femininas que eram estupradas nos filmes se matavam.
Durante o Pre-Code, um período mais “ousado” em Hollywood, poucos filmes se atreveram a tocar nesse assunto, e, quando o faziam, recebiam o ódio e desprezo dos conservadores: "Levada à Força" (The Story of Temple Drake) é um exemplo clássico de filme Pre-Code que continha em seu enredo o tema estupro e suas consequências em bastante evidência. Como retaliação, foi banido de diversos cinemas, passando anos na obscuridade, sequer tendo exibições na televisão. "Levada à Força" causou polêmica e, ao mesmo tempo, foi sucesso de bilheteria, dividindo opiniões, sendo um dos filmes que motivaram a criação de um código de censura na produção dos filmes em Hollywood. Sofreu também um “apagamento”, raramente é mencionado em filmes sobre essa temática e só voltou a ser exibido há poucos anos.
Com a chegada do código de censura em Hollywood, o estupro só não foi varrido para debaixo do tapete porque era necessário para o andamento de diversas histórias produzidas, mas ele era abordado nos filmes de forma bastante superficial. Foi em "Belinda" (Johnny Belinda), produzido em 1948, que o estupro passou a ser abordado de uma forma mais coerente, mostrando também que o código de censura estava perdendo seu poder e influência sobre os filmes. No filme, a personagem principal, vivida por Jane Wyman, é uma mulher surda-muda que sofre um estupro e engravida. Como estamos falando de um filme produzido na década de 40, obviamente o aborto não é uma opção e, pelo fato de a personagem possuir uma deficiência, ela ganhou a simpatia imediata do público e o filme fez um enorme sucesso, dando a Wyman um Oscar na categoria de Melhor Atriz.
Em 1950, foi a vez de o tema ganhar um filme dirigido por Ida Lupino. Em seu terceiro filme como diretora, Ida Lupino tocou em um assunto espinhoso, e o roteiro não contava com nenhum artifício que pudesse causar a simpatia imediata do público, como ocorreu em "Belinda". Neste filme, uma moça comum, com uma vida comum, sofre um estupro, e isso muda completamente sua vida e sua forma de lidar com o mundo — e, principalmente, com os homens. A única coisa a favor de Ida Lupino era a empatia do público em comprar o sofrimento da personagem e, claro, suas habilidades como diretora.
A história acompanha Ann Walton, uma jovem noiva interpretada por Mala Powers, que vê sua vida pacata desmoronar após ser violentamente atacada por um homem que a seguia. O trauma é tanto que ela foge, abandonando tudo — inclusive o noivo — em busca de algum recomeço. Sob nova identidade, tenta se estabelecer trabalhando em uma fazenda na Califórnia. Mas o medo e a dor ainda a acompanham: ao ser assediada novamente, Ann reage com violência extrema, levando o caso ao tribunal. É nesse ponto que o filme propõe uma reflexão dolorosa e progressista: a verdadeira culpa não está na vítima, mas em uma sociedade que se recusa a acolher, ouvir e compreender.
Produzido pela The Filmmakers, companhia independente fundada por Lupino e seu então marido, Collier Young, o filme foi feito com orçamento modesto e distribuído pela RKO Pictures. Por conta das restrições de censura, o estupro nunca é nomeado — o roteiro recorre a eufemismos como “ataque”. Ainda assim, a direção de Lupino encontra formas de tornar o horror e a angústia palpáveis: a cena do ataque é sugerida, nunca mostrada, e sons repetitivos se tornam ecos do trauma de Ann.
Além de Mala Powers, o elenco conta com Tod Andrews no papel do reverendo Bruce Ferguson, figura fundamental na defesa da protagonista, e Robert Clarke como o noivo abandonado. A interpretação sensível de Powers é um dos pontos altos de um filme que recusa o sensacionalismo e opta por tratar a dor com humanidade.
Na época de seu lançamento, "O Mundo é Culpado" causou controvérsia, mas também foi um dos maiores sucessos de bilheteria da RKO naquele ano. Décadas depois, a obra é celebrada como uma das mais audaciosas e importantes do cinema clássico americano — não apenas pelo tema que aborda, mas pela maneira como o faz. Ida Lupino, com sua câmera firme e compassiva, deu voz ao que era apenas sussurro — e fez história.
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